Laboratório de Manuseio Coreográfico

Estética do possível

foi o nome que a Rebeca deu um dia ao nos depararmos com alguma das várias limitações da distância, do remoto, do #danceemcasa.

 

nós ainda não havíamos nos deparado com nem metade delas e essa já seria a principal guia de nossas ações: a medida do possível. 

e do cuidado.

Janeiro de dois mil e vinte e um. Pandemia do covid-19. Brasil. Brasil sob um governo que já havia negado inúmeras propostas de vacinas. A vacinação havia enfim se iniciado em Janeiro, mas a perspectiva de vacina para toda a população ainda era bem distante.

Nosso processo começou logo no início de janeiro. Ensaios remotos todas as tardes de todos os dias da semana. Gestos, listas, verbos, conversas. Ações e decisões sempre coletivas. Parcerias fundamentais. Eu, Naíra, Letícia e Rebeca em São Paulo. Candice na Paraíba, Dani no Rio de Janeiro. Cris em Minas Gerais. O processo criativo foi se dando assim, numa potência criativa imensa de mulheres artistas, em uma entrega tão generosa que revelava uma saudadevontade de criar, de estar junto, de colocar outras coisas no mundo.

urgência de amar.

medo de morrer.

uma ambivalência presente, tão paralisante quanto movedora. mas estarmos juntas neste momento foi como criar um chão comum para caminharmos. Começávamos a reaver nossas relações com nossas casas, no já fadigado cenário em um ano de pandemia. O projeto se propunha a uma tríade, mas o que antes estava apoiada nos tempos passado presente e futuro, foi se transformando em diferentes aspectos de um mesmo tempo. Agora. Aqui. Uma dramaturgia que foi sendo gestada junto ao processo, se revelando nos sentidos que fomos descobrindo em ensaios, conversas, experimentos, imaginações, padlets. A dramaturgia é uma pergunta – a Candi disse – e continuou sendo. Os padlets (ver em “A dramaturgia é uma pergunta”) foram uma ferramenta central destas imaginações. Uma necessidade de ver as imagens, testar relações e possibilidades à distância. Uma mesa comum, um imaginário compartilhado em processo de criação.

Fevereiro. segundo e último mês de processo criativo. gravações marcadas para o último final de semana. Visita técnica. Testes de covid. Deu positivo.

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gravações adiadas. todes bem. tudo certo, e ainda tínhamos tempo.

havia muita expectativa e a crença de algo que seria feito junto, presencialmente. muitas cenas foram criadas na imaginação do encontro. nos imaginarmos enfim juntas parecia caber no possível se fizéssemos alguns testes e usássemos máscaras.

São Paulo, março de dois mil e vinte um. Brasil: 1.500, 1.600, 1.700, 1.800, 1.900, 2.000 mortes por dia. Fase vermelha na cidade de São Paulo. 2.100, 2.200. 2.300… Fase emergencial. Fase roxa. a pandemia passou a alcançar recordes diários de mortes por covid-19. o pico só aumentava. a negligência, o descaso, o negacionismo, as atitudes criminosas do presidente e seu governo também batiam recordes por dia. pessoas queridas internadas, pessoas queridas morrendo. tristeza sem fim.

gestos barreiras eram urgentes. todos os possíveis. a casa então se tornou nossa maior barreira, mais do que já era.

um dia sonhei que via um grupo de pessoas juntas

não se tocavam

tocavam muito a si mesmas

suas peles

era uma dança desse tocar e era bonito de ver

vontade saudade de ver a dança acontecer

 

o que o trabalho se torna é o que o trabalho é. a estética do possível é sempre móvel e vai sendo moldada também pela imaginação.

e pelo sonho.

Abril. os prazos estavam próximos e era necessário fazer uma escolha. Cris dando o prumo do nosso barco. Levantar planos A, B, C, D, E. Das tantas imaginações que nos atravessaram ficou o que está ao alcance da pele. nas condições do agora. a casa como barreira do encontro fortaleceu o que o trabalho já vinha sendo. o que nos revelou também a escolha mais coerente com a materialidade do processo. Dani já havia falado sobre isso algumas vezes, empírica que é. a condição se impõe e nos revela uma ética do cuidado. cuidar – curare – gesto barreira é um cuidado de si e do outro ao mesmo tempo. é um cuidar pelo controle, pela restrição. como Haraway diz, “não há como se engajar no sentido profundo do cuidado sem práticas de controle”.

criação de estratégias

 

gravações. cada uma em seu espaço, mas juntas no tempo, conectadas pelo zoom. três dias intensos de gravação das escolhas que já havíamos feito e as que se apontaram no momento do fazer. O Greg, o Vini, a tia da Lê, os pais da Rê, os pets, todos trabalhando para fazer isso acontecer. nossa casa, nossos celulares, nossos tripés, nossos quartos, salas, cozinhas, banheiros, nossas plantas.

 

após os dias de gravações, quase 300 GB de material. imagens viram planilhas de minutagem. edição também à distância em um diálogo através de planilhas, minutos, segundos e arquivos com Bruna, que conseguiu colocar tudo lá. Das especificidades do fazer de videodanças, a coreografia se deu, por fim, na edição. algumas idas e vindas, num processo de ir lapidando o material bruto e o trabalho foi ganhando sua forma. prazo do edital prorrogado. nos 45 do segundo tempo ganhamos mais algum tempo para finalizar tudo com mais cuidado.

os vídeos prontos foram para as mãos da Julia, que criou uma camada fundamental para o trabalho. como tocar através do som? Quais são as imagens, os gestos e os sons do cuidado?

 

 

maio de dois mil e vinte um. estreiamos também à distância, em nossas casas barreiras. 

 

Assumir uma estética do possível é estar pronta para abrir mão, mudar de ideia, criar alternativas. mas é, sobretudo, cuidar da vida. de tudo o que é vivo.

uma estética do possível que é modulada por uma ética do cuidado.

 

 

texto por Camila Venturelli